4.11.16

Onde tudo o que colide ordeiramente está certo

A praça é ampla, espaço e pessoas não lhe faltam. Parece que existe para misturar contextos antagónicos. A função da praça é essa, impelir contrários descaradamente, à luz do dia, debaixo da varanda do teatro nacional. A ruiva desbotada faz uma paragem forçada à porta do café. O empregado, que é de poucas falas e fuma entre clientes, topa-a e aproxima-se. Ela entrega-lhe uns papelinhos escritos à mão, discreta e competente; ele ajeita-os, interessado, recolhendo-os para um bolso das calças de trabalho; em troca, e em silêncio, passa para as mãos da rapariga um molho de notas bem composto, enquanto avista mais um estrangeiro chegar à esplanada; mal se despedem. A outra mulher, que tinha chegado antes da ruiva, tem umas feições distintas mas veste vulgar, é assídua no estabelecimento. Pede um fino para acompanhar uma travessinha de brócolos cozidos. Preferia estar, naquele momento, a comer arroz de pato com o homem que a deixou. Tenta cativá-lo com um telefonema polido dentro das possibilidades do seu sotaque, sem sucesso, nunca conseguirá que ele a convide para uma diária no Machado. Os rapazes, demasiado jovens para o ar de mau que encenam, chegam entretanto. São baixos e feios julgando-se atraentes e importantes. Sentam-se à vontade numa mesa do exterior a ver raparigas que passam, falam delas entre risos e grosserias. Têm tatuadas palavras nos braços e barbas ensaiadas nos cortes, acham-se na moda. O mais estiloso tem, ainda, argolas penduradas nas orelhas e poupa presa no boné, oxigenada. São amigalhaços do empregado mais novo. Os turistas que se vêem chegar são homens na casa dos cinquenta sozinhos e casais ligeiramente mais velhos. No caminho que os leva às ruas de comércio passam entre reformados pobres que ocupam sentados os bancos da praça e sem abrigo sobreviventes que ocupam deitados os degraus do cinema.


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